29/07/2005

Tese

Cinco e meia da manhã, os capuzes fazem fogueira no latão escrito chapa, na beira da estrada, esperando o caminhão passar. Deixaram mulher e filhos sem comida na favela. Antes de dormirem, sua formação cultural foi mais uma vez os comerciais no intervalo de programas de entretenimento, a oferecerem as capitais maçãs do consumo. O chapa viu os demais capuzes, um a um, subirem nos vários caminhões, mas àquela altura mais nenhum pararia. Nada resta senão andar quilômetros rumo ao centro, procurando vaga em alguma obra, pensando no seu futuro – a hora de voltar pro barraco, sem ter conseguido trazer a esperada comida. No caminho, pelos vidros filmados mal distinguiu a moça do jornal, que passou por ele rindo muito ao celular. Não havia vaga naquela obra também. Durante o dia, sua filha de doze anos deveria estar cuidando dos irmãos menores, que espreitam os amiguinhos ganhando bolas e tênis para empinarem uma pipa circunstancial. Mas o vizinho está prometendo uma vaga em sua agência de modelos, no futuro ela vai até trabalhar na novela e seu casamento sairá nas revistas da cabeleireira. O chapa vai parar na porta do barraco e sentirá vergonha de mais um dia, pois não encontrou maçãs. Sua esposa o espera temerosa de mais uma surra, deus ilumine o chapa para que não beba dessa vez, ele que era tão gentil. A culpa da esposa é trazer o dinheiro da faxina, dinheiro que insiste em fugir dele. Ainda que o tenha gasto todo no remédio em falta no posto de saúde, para o filho mais novo. Com o medo, ela não percebeu o presente que o filho do meio havia ganho dos amigos de seus amigos, uma pipa novinha. Não, ele precisaria ir tomar um trago no boteco. Ele precisava sentir-se humano por alguns instantes. Em meia hora, fingiu ter dinheiro para pagar as suas e as bebidas distribuídas, discursou, cantou, planejou, gargalhou, mal percebeu movimentos bruscos que vinham da mesa de bilhar, corpos bailando, caindo, chutando, gritando, atirando. Nunca tinha visto um projétil no ar e justo este serpentearia o cérebro, enquanto ele tivesse seu último sonho, de um grande jardim de tempo.
***
Num grande jardim de tempo, um general enfiou o guerrilheiro e o assaltante juntos na mesma cela, numa reiteração de atos tomados por toda sua cadeia genealógica. Germinou-se o Comando Vermelho.
O cacetete no escudo parecia de longe surdo, mas abriu alas pras metrancas que deram 111 tiros, germinando o PCC.
A torre central da televisão tocava flautas para os ratinhos que saíam da roça, ensinando-lhes o caminho da miragem de oásis na cidade grande. Os ratinhos recalcitrantes eram incentivados pelos gatos famintos não por leite, mas por mais terras. Germinaram-se favelas.
O general enfiador, numa longa e triste noite, imaginou-se, satisfeito, um misto de engenheiro, empresário, professor, apostador e, sobretudo, amigo de outros generais que falavam uma língua estranha, à qual só lhe cabia almejar. Colegas do general não souberam aproveitar toda a dádiva de suas imensas bibliotecas. Dela só leram os livros da técnica. Os da ética calçavam as estantes. General e seus colegas eram rapazes de sorte, sempre houve e sempre haverá verba externa para os devaneios daquele e para a realidade destes. Germinaram-se juros e inflação.
Os vírus da verdade e da instrução, até então benéficos, devem ter sofrido uma mutação terrível, pois tentou-se de todas as maneiras exterminá-los, adubando a massa analfabeta, da qual, muito dantes germinadas, floresceram flores podres ainda mais vistosas.
A legislação arcaica era o adubo ideal para a sanha do Poder Público, que atolava a Justiça com milhares de recursos protelatórios, tornando-se um cliente tão folgado, que ocupava todas as cadeiras, deixando umas pessoas chamadas povo fora dos prédios do fórum, sob o sol. Germinou-se a Injustiça, germinou-se a impunidade.
A conivência deste mesmo Poder Público com as normas da iniqüidade, que deveriam ser combatidas, de tanto lamber lascivamente os membros dos especuladores financeiros, adubava a exploração humana. Floresceu as flores podres da desigualdade social.
A moralidade hemofílica de todos os homens e mulheres tornou-se no máximo um dente do siso cariado. Se incomodasse, extraía-se com facilidade e quase nenhuma dor, que passava rápido. De sua ferida gangrenada, floresceram em metástase as flores podres da corrupção.
Pois bem.
Havia borboletas canibais de cores lindas e patas nutritivas sobrevoando constantemente cada item germinado. Duas espécies sobressaíam-se: o individualismo e o consumismo.
Tais insetos tinham sua sobrevivência sujeita a um único requisito: poder.
Para preenchê-lo, tateavam em cada item à procura dos meios necessários, que afinal não eram difíceis de encontrar, a variedade era vasta: malas-cala-bocas da fiscalização, da execução, da legislação, da jurisdição; influência na imprensa; tráfico de drogas, de armas, de mulheres, de crianças; exploração de trabalho escravo; devastação de reservas ambientais; extração clandestina de minérios; pirataria de qualquer espécie. Exemplos de quitutes mais apreciados.
Onze e trinta e cinco da noite, no crepúsculo de seu sonho, o chapa entreviu tardiamente o filho do meio, seu xodó, que corria sorrindo, enquanto empinava a pipa ganha, com uma linda e definitiva borboleta estampada no céu azul.

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