11/08/2005

Antítese - II

Foi na pedra, antes de o escorpião aparecer, que ouvi o relato pela primeira vez. Já tinha escutado histórias de outras comunidades alternativas antes, hedonistas, anarquistas, fundamentalistas, maconheiras e esotéricas. Então não dei muita bola e continuei a comer meu lanchinho de trilha, ainda uma novidade.
Enquanto descascava minha laranja com meu supercanivete que, fora isso, só serviu pra eu pagar mico no aeroporto, retido pela infraero, polícia federal e o escambau, a história da comunidade passou a soar diferente.
Tinha uma francesa que ensinava atividade circense, porque no circo os mais experientes ensinam e cuidam dos mais novinhos. Tinha um paranaense que consultava e medicava toda a população da região sem cobrar um tostão. Tinha um inglês que ensinava inglês. Tinha uma mulher que fundou a escolinha construtivista. Tinha o povo de Salvador que, uma vez por ano, vinha trazer cinema e teatro.
Aí já comecei a perguntar:
- vcs têm líderes?
- Sim, todos somos líderes, a liderança é naturalmente variável, cada um tem sua habilidade e todos partilham de cada qual.
- E o dinheiro?
- Estamos quase conseguindo produzir tudo o que necessitamos. Todos tem educação, alimentação, moradia, vestuário, medicação, cultura. Com o excedente, aplicamos para quem precisar de um dentista, de algum tratamento médico mais sofisticado, do qual a comunidade não disponha. Aí nem se fala só da comunidade propriamente dita, mas de toda a cidadezinha e redondezas, já com a ajuda da associação de moradores.
- E se não precisar usar na hora? Vcs dividem?
- Não nos preocupamos tanto com o dinheiro assim. Todo o dinheiro é de todos.
- Certo, mas e quando surgir dúvida do melhor uso?
- Consenso.
- Ah, claro, votação?
- Não. Consenso. Não existem votos minoritários e majoritários. Todos têm de se convencer. Esta é a parte mais difícil, às vezes demoram dias, mas nunca há conflitos.
- Então vcs precisam ser bem flexíveis, certo?
- Mais ou menos, ninguém pode abrir mão de sua opinião própria. A flexibilidade vem pela capacidade de mudá-la, mas sempre com convicção. Todos têm que pensar e refletir.
- E quando surgir um dilema insolúvel?
- Aí a pessoa vai ter de sair da comunidade, se preferir, claro.
- E muita gente já saiu?
- Ninguém.
Até aí, beleza, era tudo na palavra do cara. No dia seguinte, eu ia no último banco do jipão, quando vi no meio do sertão uma molecadinha sair correndo da escola, todos na berraria alegre, vestidos, calçados, com as mochilinhas.
Aí o guia: - Tão vendo? Elas estão indo pro centro cultural. Elas já tomaram o café da manhã, reforçado e natural, na escolinha. Depois de exporem os seus trabalhos, vão assistir ao filme do dia na Mostra de Cinema, pra depois voltarem pra sala de aula.
Sei dizer que pareceu ter o sol brilhado de um jeito diferente aquele dia na Chapada, mas acho que era só impressão. Uma ótima impressão.

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