24/12/2006

Moa e a felicidade

“E a vida? E a vida o que é diga lá meu irmão/ Ela é a batida de um coração/ Ela é uma doce ilusão”, Gonzaguinha

Já é quase verão em Atibaia, as nuvens brancas empurradas pelo vento desenham formas abstratas no céu. Nestes dias de chuva, a terra vermelha fica mais escura e pegajosa, o que deve ser bom para as plantas, mas é um desastre para o meu Adidas.
Caminho pouco menos de um quilômetro, a partir da casa da minha mãe, e estou no sítio para revivar as lembranças do Moa. Elas não param de vir, me vejo entrando pelo portão, sempre aberto, em diferentes fases da vida: de bicicleta, de mobilete, de carro, a pé. A estrada de pedrinhas, as palmeiras, a barra, a capelinha, as árvores altas, que cercam o campo de futebol, as traves de madeira pintadas de branco, o gramado, a piscina, o telhado da casa dos fundos, onde a gente jogava vôlei nas tardes ensolaradas, está tudo lá e ao mesmo tempo tudo se foi.
“Você é como a felicidade, chega de uma hora pra outra”, o Moa me saudou assim uma vez, talvez a última que o vi. Eu fiquei encucado.
Moa gostava de contar piadas sem graça, às vezes eu tentava rir, era o agregado da casa, como ele dizia, mas os filhos (Felipe e Carol) eram implacáveis e imitavam a sua risada fanha. Todo mundo acabava rindo da risada. O caçula, Thiago, tinha ido morar com a mãe deles em Belo Horizonte. Hoje em dia é um homem barbado.
Estudei com Felipe da sétima série ao primeiro colegial, nos tornamos melhores amigos e eu vivia no sítio, onde eles moravam, todos os finais de semana. A família tinha classe, a especialidade da casa, filé à Louis XV, que é o filé com aspargos. Os almoços eram animados, mas sem o mínimo barulho de talheres. A hora da mesa era sagrada, afinal, estávamos diante de um puro sangue italiano, todos os seus quatro avós eram do país da bota. Um coisa meio mafiosa, por exemplo, que a gente adorava era beijar o rosto do Moa, como uma forma de respeito ao “capo”.
Moa me ensinou muito, principalmente que a maior riqueza de um homem é sua cultura, “o dinheiro a gente pode perder, a cultura não”. Acho até que tenho levado isso a sério demais.
Era filho de gerente de banco, talvez por isso gostasse tanto de fazer contas na sua calculadora no quartinho-escritório lá do sítio. Estudou um pouco de direito, no Largo do São Francisco, mas acabou se tornando arquiteto autodidata. Fazia desde casinhas a mansões do tamanho de um quarteirão. Era meio gênio, imbatível nas palavras-cruzadas.
Adorava as mulheres e professava o respeito por elas, nasceu em Jaú, mas era um bom mineiro, não gostava de exibicionismo, “nunca fale de suas intimidades”. Vestia-se com elegância, vivia bem, era um pouco aristocrático, mas não tinha nada do deslumbre dos novos ricos. Tinha um fraco por um bom vinho, mas nunca o vi alterado, mesmo tendo chegado em sua casa várias vezes sem avisar, mesmo quando morou meio sozinho um tempo, num misto de inocência e indecência da minha parte. Uma vez estraguei uma sessão de meditação em família, foi muito estúpido.
Moa gostava de bossa nova, automobilismo (Fittipaldi, Piquet e Senna), Tyson, Dire Straigths, odiava areia de praia, Chico Buarque, Carnaval.
“Se um problema não tem solução, está resolvido”, “É melhor ser cabeça de formiga que pata de elefante”, “Se estiver numa briga, desmoralize o cara com um tapa, ele vai parar de encher o saco”, “Se estiver deprimido, não se mate, vá dormir”. O Moa tinha conselhos e frases para qualquer assunto importante.
Adorava contar estórias que lembro como se as tivesse vivido. A do amigo que capotou o carro e disse ter sido vítima de um ataque de disco voador, da sua turma nos cinemas de Belo Horizonte, trocando letreiros para escrever palavrões e decorando as falas dos filmes para dublagens ao vivo no corredor, as idas ao Mineirão para torcer pelo Galo, as peripécias do juiz Cidinho Bola Nossa e do jogador Buião.
Olho pela cerca de bambu para dentro do sítio. Se o Moa estivesse ali, bastaria entrar e trocar umas palavras com ele para aquele dia ser perfeito. Mas só de lembrar as lições que aprendi na sua convivência, fico imensamente alegre. E finalmente percebo que ele estava certo, os momentos de felicidade podem ir embora mais rápido que pensávamos, então só nos resta aproveitá-los em sua plenitude.

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