16/12/2006

O Ato subversivo de escovar os dentes

Lembro que li, há alguns anos, um texto de uma colunista da Folha de São Paulo, no qual ela narrava os procedimentos de segurança das companhias aéreas pós famigerado “11 de setembro” e se revoltava com a irreparável perda de uma tesourinha de unha. Relíquia de família, presente de sua avó, tinha ficado para trás nas inspeções dos implacáveis detectores de metais.
Isso já havia acontecido comigo em um vôo doméstico, quando perdi uma inestimável tesourinha dobrável que ficava quase invisível na bolsa. Quem me conhece sabe que adoro tesourinhas dobráveis, super canetinhas que ficam pequininhas. Pois é, sabem como doeu.
Mas nunca me senti tão solidária àquela colunista quanto no dia em que embarquei, recentemente, para Nova Iorque.
Havia sido devidamente alertada dos horrendos perigos dos batons, remédios de gotas, enfim, de tudo o que fosse líquido ou em gel, pela possibilidade de, misturados a outros componentes “x”, poderem se transformar em bombas. Até aí tudo bem. Embora eu sempre tenha tirado “0” em química e nem o famoso “sangue do diabo” eu conseguia misturar, não senti nada pessoal em tirar minha maquiagem da mala de mão e transferi-la para aquela que seria despachada. Perua ou não, posso ficar sem isso. Água? Tomo no avião. No entanto, o funcionário da Delta Airlines realmente mexeu com meus brios ao me sugerir tirar a pasta de dente E o desodorante da mala de mão.
Fiquei imaginando uma legião de bafentos e fedidos adentrando o país da “Liberdade”. Pior. Fique ME imaginando bafenta e fedida entrando em solo americano. Qualquer solo, oras bolas. Tenha dó!
Comecei a cerimônia dolorosa das despedidas. Adeus ao creminho cheiroso para mãos, adeus à manteiga de cacau que mantém os lábios hidratados no ar-condicionado do avião, adeus ao perfuminho de bolso. Quase às lágrimas, despedi-me da lixa de unha e do batom, e até mesmo do desodorante. Mas peralá. Estava me sentindo num daqueles testes de sobrevivência no mato. Pasta de dente, não!! Proclamei meu limite. Se até a escova de dente podia entrar, pontiaguda e com um potencial lesivo muito mais acentuado, decidi que ninguém, nem mesmo o Bush cara de pastel em pessoa, me impediria de enfiar a pasta na bolsa.
Comecei a “operação pasta de dente”. Primeiro, localizei um funcionário simpático da Delta (isso só funciona com homens). Depois, perguntei se a cia aérea dava pasta e escova aos passageiros. Só na primeira classe, disse ele. Então, rapaz, eu sou pobre, nem paguei a passagem, estou na classe econômica. E só por isso tenho que ficar com bafo?!? Alguns minutos de perturbação crônica depois, com perguntas do tipo: - SE você não fosse mais funcionário e estivesse embarcando, SE você quisesse muito levar sua pasta de dente, SE você conhecesse os procedimentos de segurança e como quebrá-los, SE você fosse um rapaz simpático e sorridente, SERÁ que você me contaria?
Ele olhou prum lado, olhou pro outro, e me disse: - Enfia o tubo no bolso do teu casaco. Quando você chegar à aeronave – PAUSA: adoro o “vernáculo avionês”, no qual não se diz avião, mas aeronave – eles só revistarão tua mala de mão, e não seu casaco. Disse isso com um olhar febril e excitado, de quem quebra as regras pela 1ª. vez: - E nunca diga que eu te contei. Aliás, eu nem te vi. Tchau. E desapareceu como fumaça por uma porta que eu sequer tinha visto até então. Deve ter ido ajoelhar no milho e se penitenciar pelo pecado cometido.
Eu, por outro lado, satisfeitíssima e me sentindo a transgressora da pasta de dente, provando que todas as regras existem para serem quebradas, assoviei, disfarcei, fechei a mala, despachei-a, e mantive a letal, a explosiva, a herbal pasta de dentes em meu bolso.
E se me pegassem na revista? Será que só arrebatariam o tubinho, vociferando insultos do tipo: “- Bitch!!”? Será que me levariam para uma salinha de averiguações? Lembrei que ainda estava em solo brasileiro e que, apesar das nossas mazelas tupiniquins, desde o fim da ditadura, com a CF de 88, a prisão para averiguações deixara de existir. Pisei firme, convicta de minha transgressão e dos meus direitos. O 1º. Deles, inalienável, era de ficar limpinha e de ter um hálito fresco.
Empreendi a patética jornada rumo à Polícia Federal. O funcionário analisou, com cara de inteligente, meus dois passaportes – o visto pros EUA estava no primeiro deles. Ihhhhh, pensei, ai vem... Não deu outra. –Sra. Bisturelo, disse-me com um olhar perscrutador - adaptando as técnicas de Torquemada na inquisição dos hereges - o seu 1º. Passaporte está com um sobrenome e o segundo tem um sobrenome a mais. – Sim, respondi. Casei-me depois de tirar o visto, e depois tirei o outro passaporte. Até já me separei. Voi lá.
A impressão que tive de sua expressão facial, de seus olhinhos apertados, era que ele ouvia meu claro português, mas entendia assim: - Rashminacrocró, otchitchórnia, balalaika... Acho que ele fazia a tradução simultânea para russo castiço, me tomando por uma espiã divorciada prestes a explodir o avião americano.
Mas peraí! A guerra fria acabou e os russos sequer são homens-bombas. Seria eu uma Mata Hari moderna, suicida? E isso porque ele nem sonhava que eu carregava m instrumento muito mais mortal, ... tubo de colgate herbal!!
Ele me olhou de cima a baixo, mostrou autoridade com comiseração à pobre espiã divorciada, e me deixou passar, desconfiadíssimo.
Andei pelo portão de embarque meio orgulhosa, meio temerosa de meu segredo de Estado: Olhava pros lados como se fosse diferente dos outros. Afinal, eu tinha uma pasta de dente no bolso do casaco!
Quando cheguei ao momento crucial da revista, a mocinha abriu superficialmente minha bolsa, não achou nada suspeito, indagou se eu portava outra bolsa e eu, com cara de anjo inocente disse: não.
Entrei triunfante e criminosa no avião. Adrenalina pura.
Quando acordei, após 1 longo vôo de 10 hs (somados os atrasos), camuflei a escova e a pasta de dente dentro da blusa e me dirigi ao banheiro.
Abri a torneira e pratiquei o prosaico ato da higiene bucal, que nunca foi tão agradável. Senti cada dentinho, cada frescor ardido na boca, cada bochecho. Nunca um ato tão frugal havia sido tão saboreado, e tão... SUBVERSIVO!!!


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