23/03/2005

O atraso do atraso

"Há 20 anos, o deputado de esquerda Fernando Lyra dizia como elogio e compensação que o então presidente José Sarney era a “vanguarda do atraso” e que, com o tempo, ele acabaria avançando. Segundo uma concepção esquerdista da História, ela marchava sempre na direção do progresso, para a frente, sem paradas, recuos ou desvios. Anteontem, no entanto, o presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, como que comemorando o aniversário de implantação da Nova República, prestou mais uma homenagem ao retrocesso, que ele tão bem representa.

O Brasil progrediu muito nestas duas décadas, inclusive na política, mas Severino caradura veio para contrariar Cazuza e demonstrar que o tempo pára e até anda para trás. Arcaico e anacrônico, ele não deve, porém, ser encarado como fenômeno folclórico. É coisa séria nesta nossa República tão pouco republicana. Consegue com seu pistolão a nomeação de um filho, por exemplo, e se acha no direito de fazê-lo e de afrontar a opinião pública confessando o ato com despudor e orgulho: “Se tivesse mais filhos, estaria colocando também.”

A franqueza com que assume e anuncia o nepotismo, o fisiologismo e o corporativismo é de quem acredita que não só seus pares, mas todo o povo brasileiro pensa como ele e agiria da mesma maneira, se tivesse coragem e oportunidade. Ele se apresenta como a parte visível, escancarada dos desejos inconfessáveis e do lado oculto, da zona de sombras dos que ele acredita encarnar.

Mais do que um ultimato, a chantagem que fez ontem ao presidente da República em público, para depois, em particular, dizer que estava brincando, dá a medida do que é capaz e de até onde pode ir. Os que o defendem alegam ser melhor assim, porque ele é autêntico e sincero, faz tudo “às claras”, como o próprio mesmo diz.

De fato, se a hipocrisia é uma homenagem que o vício presta à virtude, o presidente da Câmara preferiu adotar definitivamente o cinismo, que manda às favas todos os escrúpulos. Desde que foi eleito, aliás, vem nos chantageando com sua condição social e cultural — e nessa a gente corre o risco de cair por culpa e medo de preconceito. Como é simplório, feio, inculto e lutou para subir na vida, usa tudo isso como álibi para nos impor uma conduta ética reprovável e despertar em nós divertida complacência.

Severino Cavalcanti é a expressão vulgar do senso comum como se fosse o bom senso. Ele é o atraso do atraso. Pode ser até ingênuo e primitivo, mas de inocente e inofensivo não tem nada."
Zuenir Ventura (O Globo, 23/3/2005)

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