02/08/2005

Antitese - I

O coleguinha do menino levou um tiro na nuca, disparado a partir do mesmo tambor dos outros cinco. Seu delito foi ser irmão mais novo de um dos mortos. Crime muito semelhante, aliás, ao cometido pelo pai, mãe e outro irmão. O menino chorou a morte do coleguinha, bem como a da pessoa-motivo da chacina, que sempre fora tão legal com ele, dera-lhe a pipa da borboleta estampada, pena que fosse tão novo, pois o queria para pai. Ele sim, sabia contar histórias, redesenhando no ar os fatos, com o revólver que para isso tirava da cintura. O menino entristecia mas concordava quando o herói, depois de cheirar um pozinho mágico, berrava que os pais de ambos eram trouxas, pastavam no asfalto em busca de um trabalho que jamais daria pra comprar as sonhadas maçãs, só eram homens pra baterem em suas mulheres, quando encachaçados. Ele não, olha só aquele tênis. Ele não, olha a jaqueta, olha o dvd, olha o mp3. Aquilo era só o começo, berrava com seus olhos vidrados, pra platéia vidrada dos menorzinhos. Ele um dia seria dono de tudo aquilo – e seu revólver percorria o contorno da favela, no entardecer. E daria proteção pras mães todas, e pra eles todos, quem quisesse era só segui-lo.
E agora, seguir a quem, se, trouxa ou não, todos morreram? Chega de seguir, pois o caminho leva só ao choro e à lamentação da mãe viúva. Era hora de ocupar. Mas ele ainda não conhecia esse verbo. Nem tinha a coragem para um dia conhecer. Foi então que ouviu o som do barraco ao lado, de uma maneira diferente. Dois poetas contavam a história do seu pai. E do coleguinha morto. E do amigo do coleguinha morto, já sem o seu revólver para contornar o horizonte da favela. Os poetas ritmavam os amigos na cadeia, os ricos do jardim, os poderosos públicos, os poderosos privados, os poderosos privadas. O menino chegou à janela desse barraco e viu dois caras dançando ao chão. Pareciam reflexo um do outro. Uma moça chegou perto e deu-lhe um chocolate. Onde estavam os revólveres? Ali só existiam canetas, livros, folhetos, um computador no fundo, aparelhagem de som. A moça do chocolate disse ter gostado do ritmo com que o menino balançava a cabeça e falou: vou te ensinar a dançar. Vou te ensinar a pensar e também a sonhar teu pensamento. Ritmo e poesia. Olha que cartaz lindo vamos pôr aqui na porta. O menino pôde ler: a voz.
***
O menino ainda não sabia, mas ali naquele barraco juntaram-se algumas vítimas, alguns insurgentes, alguns pensadores. Ali discutiam e transformavam em música e dança todas as dificuldades e as esperanças. De início eram três, depois trinta, a seguir, cem, faziam concursos em que todos venciam. Pessoas certas apareceram no momento certo e apoiaram o diálogo com a escola mais próxima. Os alunos aderiram. O pátio, antes trancado pela série de vandalismos, agora era cuidado pelos antigos detratores. Pois lá havia cursos de dança, de costura, de capoeira, de música. Na quadra, equipes podiam jogar futebol de dia e à noite.
Antes da eleição para prefeito, a fila dos drogados à frente do barraco do traficante equiparava-se à fila dos militantes dos partidos políticos à frente do barraco da voz, em busca do apoio. A diferença era que os drogados eram abraçados. Os partidos, repelidos.
A voz precisa sim de um líder, mas este será escolhido por todos, explicava a moça do chocolate, para várias pessoas sentadas ao lado do som. O menino escutava e gostava de sua segunda e nova casa. O menino pôs as duas mãos em conchas seguidas, unindo boca e ouvido e pôde ouvir amplificado o que dizia baixinho: - minha voz!

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