28/11/2005

Diálogos nômades

Já é quase verão, mas São Paulo continua fria. Outro domingo sem nada para fazer, entro no MSN e ninguém aparece, uma prova ridícula de que eu não precisava ter bloqueado tanta gente estes anos todos. Abro um e-mail da Nathália para responder e ela pergunta do Pedro. Hnn, bem lembrado, a gente não se fala há décadas. Eu ligo para o maluco, ele está no Itaú Cultural, coincidência, lá rolaria um show dos alemães do Tarwater, que eu estava pensando em ver, bem vamos lá. Buenas hierbas no bolso, tudo em cima.
Preciso lembrar de trazer meu bloco na próxima vez que vier ao metrô para escrever de observação. Luzes verdes. Uma gringa bonita, mas sem peitos, sentada na minha frente. Leio na sua mochila, Desilée, 12, rue... deve ser francesa. Que será que está fazendo em São Paulo? Mexe no i-pod, está com um fone vermelho grande demais, cobrindo toda a orelha. Saio olhando para ela, ela percebe e me ignora. O trem começa a andar e ela se vai, no começo devagar, depois rápido, e some. Adoro este exercício. Não foi o caso, mas já me apaixonei no metrô várias vezes, "I fall in love to easily..." Acho que sou autista.
Pedro Paulo Rocha, o Adad Zoom, que acaba de finalizar "Kinema", seu primeiro filme, está no Itaú - o pênis branco - com a sua jaqueta militar de sempre e a barba cobrindo a cara. Reclama que está sem dinheiro, eu digo que também estou fodido. Damos uma volta no quarteirão para fleuberizar. Pênalti para o Corinthians, carros, bares, Tevez perde, subimos e descemos a rua, gol de quem? Vamos só até ali embaixo, dobramos a esquina, ligo o gravador de surpresa.

MÍDIAZERO - Nietszche dizia que uma idéia só tem validade se tiver surgido enquanto estivermos andando...
ADAD ZOOM - O melhor filósofo pensa andando.
MÍDIAZERO - Eu estou fazendo uma oficina com o (quadrinista e escritor Lourenço) Mutarelli, e ele propôs na primeira aula um exercío de que cada um descrevesse uma pedra, a primeira imagem de pedra que viesse. Descreva a sua pedra...
ZOOM - A pedra de fogo líquido. O sol explode nela, você não vê mais nem a pedra.... Não sabe se está dentro da pedra ou se você está vendo.
MÍDIAZERO - Você tem esta imagem na cabeça?
ZOOM - Agora me veio, mas é mais a mutação das substâncias, das formas, as pedras viram vapor, vapor vira terra.
MÍDIAZERO - Quando lembramos de algo coisa, vem pela imagem?
ZOOM - A gente pode inventar alguma coisa. A imagem desmemorial, uma imagem sem lugar, sem memória. Flash, uma luz, que explode na sua retina. Uma luz muda pode lembrar um som. O alarme de um som.
A memória está flutuando, você inventa quando você lembra.
MÍDIAZERO - Sobre o que que é o seu filme?
ZOOM - Meu filme é sobre essa desmemória da luz, são flashs de algumas memórias futuras. É um filme que eu esqueci sobre o que que eu fiz ele, cada vez que eu vejo este filme eu lembro de filme futuros, de roteiros que eu não fiz, de imagens que eu vou encontrar. É um filme que eu encontrei enterrado em um plasma caótico imaginário, é um filme que eu estou desenterrando do plasma da percepção.
MÍDIAZERO - Porque você resolveu chamar isso de "filme"?
ZOOM - É o nome convencional. Não é um filme. Para mim é uma passagem para outras experiências, ou a experiência da vivência de ver o filme, de um mergulho sensorial, se for um cinema de cinco dimensões, onde o espectador é engolido pela sensação do próprio filme, entrar dentro do espaço multi-dimensional, então não é um filme. É um experiência sensorial, que pode dela brotar outras experiências e outras idéias e outras filmes. É um kino-processo, aberto, que só começa pelo meio.
MÍDIAZERO - Tem alguma estória?
ZOOM - A estória são os efeitos dos ritmos, das imagens e dos sons. O som e o ritmo estão em primeiro plano. É um fluxo, um interlúdio para uma passagem. Os personagens são os ritmos.
MÍDIAZERO - O que tem de Glauber Rocha nele?
ZOOM- Tem o imaginário, além Glauber, que é devir revolucionário, devir Zumbi, o filme capta e faz explodir, às vezes até sem precisar dizer, ou mostrar ou referencializar, as sensações, destas imagens que você não tem imagens. Então você capta e faz explodir isso em mil estilhaços. Devir Zumbi, devir cangaceiro, devir guerreiro.
MÍDIAZERO - O filme é marca do tempo. Talvez isto o diferencie mais?
ZOOM - O filme é feito para ser jogado no lixo caótico do nosso tempo. Tudo é consumido e esquecido. O filme é para ser consumido e evaporado no momento da exibição, da fricção dos ouvidos e dos olhos. É um filme do corpo, quase-cinema, um kino...
MÍDIAZERO - Kino?
ZOOM - Kinorama. Kino-espaço...
MÍDIAZERO - Dziga Vertov?
ZOOM - Dziga Oiticica.
MÍDIAZERO - Você vê um paralelo entre seu trabalho e o VJing?
ZOOM - Os VJs acabam reproduzindo uma certa facilidade estética, um certo ritmo, uma certa forma de compor a imagem. E um movimento globalizado como a música eletrônica, tem que também ser devorado pelas localidades. Não pode surgir em um lapso.
MÍZIAZERO - É o colonialismo?
ZOOM - Não...
MÍDIAZERO. O colonialismo do capital!
ZOOM - É o resultado do colonialismo de dimensões mais perversas na cultura. Mas isso vira veneno e antídoto. O capitalismo é estético.
MÍDIAZERO - Você prefere o cinema ou a pista de dança?
ZOOM - Tem que desguetizar, abrir espaços. O espaço do cinema pode ser qualquer lugar, não precisa ser dentro da sala. Hoje pode ser interessante levar o público para um espaço não-convencional. Não com um projeto de cinema na rua que não tem nenhuma consequência, não desestabiliza a indústria do cinema das salas. O kinema subterrâneo teria que desorganizar a economia cultural.
O cinema segue um curso que está muito longe da diversidade do audiovisual, isto é claro. Só que o pessoal do audiovisual subterrâneo também começa a se guetizar. Tem que globalizar a própria cidade, re-localizar a própria cidade. A anti-arte é na rua.
MÍDIAZERO - A rebeldia foi capturada, assimilada.
ZOOM - São Paulo tudo acontece e nada acontece. Todo mundo faz enlouquecidamente e ao mesmo tempo são acontecimentos sem efeitos. A rua está aberta para ser ocupada.
MÍDIAZERO - No interior (de São Paulo) é diferente?
ZOOM - Lá as células estavam desorganizadas, aqui elas são funcionando, mas elas precisam viver um estado cancerígeno, começar a conectar os foras e criar uma economia nova. Estes movimentos não-institucionalizados estão entre uma possível anarquia, que vai modificar toda a cadeia de produção, toda lógica da economia, e a criação de uma simples empresa, um modelo capitalista de gerenciamente, de organização. Você não sabe se é uma agência ou se é um coletivo de cultura, se faz arte ou política. São Paulo está capturado pelo capital, desde o modernismo. Então tem que copular, não interromper o coito, não foder o capital de forma castrada, tem que foder o capital e este dinheiro ir para rua. Tem que haver um sequestro do capital.
MÍDIAZERO – Mas você mesmo falou, não acontece porra nenhuma... lembra a gente na faculdade, “classe média de merda”...
ZOOM – É uma crise existencial. Tem que passar do existencialismo para o tropicalismo.
MÍDIAZERO – Tropicalismo?
ZOOM – O tropicalismo é o surrealismo latino.
MÍDIAZERO – Não é muito anos 60?
Z0OM – O problema é a elipse, o hiato. Você tem que devorar tudo, sem tempo, sem hora, o futuro, o passado. Oiticica, Tom Zé, Idade da Terra, Rogério Sganzerla... todos cadáveres enterrados soterrados. No último filme do Sganzerla, “Sob o Signo do Caos”, ele anuncia a própria morte, a censura ao cinema de invenção. Eu entrei sem pagar neste filme e comecei a entrar em várias salas sem pagar nas sessões. Funciona! O cinema está muito caro.

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