23/02/2007

causo

a menina estava sentada na mureta da casa dela e deu pra ver um fiapo da calcinha.
o menino mal viu, me saiu berrando pela rua agitando os braços: eu vi a calcinha dela, eu vi a calcinha dela, eu vi a calcinha dela. a menina sentiu um ódio tal, que saiu vociferando impropérios indizíveis no encalço do menino. o menino pulou pra dentro do quintal da casa dele e trancou o portão. a menina começou a jogar areia e barro na casa do menino. o menino sentiu um ódio tal, que foi à sua cozinha antes de sair vociferando impropérios indizíveis no encalço da menina. a menina pulou a mureta da casa dela e fez fusquinha pro menino, que me saca o que tinha pego na prateleira da geladeira, um baita ovão, pra jogar na casa da menina. e jogou. a menina partiu pra cima e o menino armou o socão, aí a turma que atiçava os dois até então, assustada, apartou.
mais tarde, durante a conversa-séria-decorrência-natural-dos fatos, diante dos pais, o menino tentou expressar o que hoje eu falo direitinho. quando a menina jogou areia, ele lembrou da mãe dele varrendo o chão horas antes. foi dozinha da mãe que deu, que que é, não existem sentimentos simples nessa vida? daí ter pego o ovo e ir chacoalhando-o friamente até tacá-lo na casa da menina.
No dia seguinte, mais uma decorrência-natural, estavam "de bem". Jogavam Jogo da Vida, um jogo em que vc percorria o tabuleiro da vida com um carrinho com buraquinhos em cima. Conforme vc ia "vivendo", vc ia preenchendo os buraquinhos: esposa, viagens, filhos, comprava casas, perdia empregos etc. Passada a raiva da noite anterior, deu vontade em ambos de estarem no mesmo carrinho. Eles não suspeitavam ainda que a isso as pessoas nomeiam amor. ou, vá lá, só um brotinho dele.
Meses depois a menina mudou de casa, anos depois o menino mudou de casa.
O fim da menina não foi feliz, penso eu. Ela tomou a atitude mais corajosa e antinatural que um ser humano pode conceber, ainda penso eu, sem julgá-la.
Dessa história nem o golb sabia, e olha que são poucas as histórias que o golb ainda não sabe, mas fato é que o menino está aqui, decorrência-natural-dos-fatos, rendendo homenagem à madrugada, ouvindo smashing pumpkins e tomando uminha, apenas preenchendo aos poucos os espacinhos vazios em seu carrinho cor de prata.

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