23/02/2007

Haxixe no pife

A terra do sertanejo encontra o “mood” anárquico do jazz em pleno carnaval

por J. FERREIRA

Com muito cuidado para não fazer barulho, estamos subindo a escada da coxia do Teatro Goiânia enquanto Carlos Malta e sua banda Pife Moderno começam a tocar lá embaixo. Estou com Felipe, um músico que conheci lá e um casal desconhecido. Felipe acende a parada e sinto o cheiro de haxixe. Os sons da percussão e dos pifes envolve. Assim que eles param, a platéia aplaude freneticamente e os músicos sorriem aliviados. Estamos bem em cima do palco.

Goyaz, a grafia antiga do Estado de Goiás, parece ela própria ter sido criada num escritório de publicidade para dar nome para um festival de jazz. E ali era preciso de alguém muito capacitado porque, a princípio, jazz parecia uma coisa “cool” demais para o tropical subúmido e para um pequena elite ignorante. Opinião dos fracos.

“As pessoas ficam surpresas de ver que podem vestir as roupas que usam normalmente para ir num show de jazz”, diz Cláudio, produtor do evento com seu irmão gêmeo, Carlos. Algumas horas depois do show de Carlos Malta que encerrou os três dias de Festival, o produtor estava de pé ao lado do computador onde a fotógrafa gravava uma mídia para mim. Cláudio estava uma pilha de nervos. “Só vou sossegar depois que pagar todo mundo daqui uma semana”, desabafou.

Eu pego a mídia e caio fora até o hotel. São quase duas da manhã e como eu fiz todos os dias, atravesso as cinco quadras a pé em direção ao hotel no mais absoluto silêncio, nenhum carro passa, nenhuma pessoa. Goiânia era uma cidade fantasma no Carnaval e isso me encantou. A única lembrança que tive dessa festa abominável e decadente foi quando me deparei com um pequeno Batman atravessando a rua de mãos dadas com a mãe.

Dia 1

A primeira impressão: um terrível vôo com o avião fazendo barulho e uma linda morena do meu lado. Comemos o kit-mendigo da companhia aérea, do outro lado uma mulher fedida, falando umas palavras em espanhol, típico de quem mora em outro país em que se fala espanhol há um tempo. Imagino o avião caindo e a morena me arrancando um beijo violento, mas talvez aquilo realmente fosse o mal da altura, soroche na cabeça que latejava devido à manhã fumando vários beques e me despedindo da loucura para uns dias. Iria encontrar meus amigos do Caminho de Santiago, Lisa e Edu, e como eu não havia fumado no caminho, decidi que ficaria sem beque também e assim viajei limpo para Goiânia, em um périplo de ônibus e metrôs que tomaram algumas horas, mas, tudo bem, poderia ser bem mais se um camelô tivesse me alertado que meu plano de ir a pé da estação São Judas do metrô até Congonhas era um tanto quixotesco, para não dizer idiota.

O vôo transcorreu bem, e a morena, meio japonesa, peitos salientes, rosto perfeito, estava se cagando de medo. Morava em Barcelona, na verdade em um pueblo, ela me confidenciou mais tarde.

Me arrependo a primeira vez de estar sem beque quando vejo o hotel, cinco estrelas, uma vista para o skyline plano do Cerrado, o céu parece mais perto da terra, alguns prédios, do ponto de vista urbanístico Goiânia parece uma Campinas que deu certo. Pelo menos nas regiões mais ricas, não vi nenhuma favela nos quatro dias que fiquei lá. E atravessei a cidade por todos os lados com Lisa e seu heróico carrinho branco. Carruagem do príncipe dos mendigos e de seu mãe postiça do Caminho.

Mas, anyway, eu iria fumar sem fumar ali. Carpetes, piscinas aquecidas, martinis. Com licença, estou no “Encontro e Desencontros”, vou descer pro bar do hotel e tentar encontrar a Scarlet Johanson.

Percebo que não comi o dia todo, fora o kit mendigo e estou morrendo de fome, sem chance de comer no hotel a menos que eu queira deixar meu escalpo, passo no supermercado e como um salgado. A caixa era bonitinha, adoro suburbanas que trabalham de uniforme.

Direto ao Teatro Goiânia, o show do Duofel vai começar. A dupla está afiada como sempre e aproveita o sistema de som poderoso para fazer um show de rock. Belo cartão de visistas para o festival, que em seguida apresenta Ricardo Leão e é hora de ir para o camarim de João Donato, que está com Robertinho Silva, eu preciso descobrir se ele conheceu mesmo o Fela Kuti. Outro cara que está com Donato é Luizão Alves, que tocou com Luiz Eça, do Tamba Trio.

Fico de bobeira na porta do camarim, de vez em quando alguém me pergunta de onde eu sou e eu respondo com paciência fora do comum. Uma groupie quarentona sem muitos atributos físicos favoráveis, amiga da atual mulher de Donato. Ela me bombardeia com perguntas, respondo todas e ela tenta me apresentar ao grupo. Donato está sentado numa mesa, apenas o comprimento, a groupie vai me apresentando todo mundo, já fui apresentado ao Robertinho Silva algumas vezes, mas ele evidentemente não se lembra de mim. Puxo conversa, ele tenta lembrar do Fela Kuti... Até que lembra e não se empolga muito, “ah eu conheci com o Gil”. Sei que o momento antes do show exige concentração, então não fico embaçando no camarim e vou ver mais um pouco do show. Estão tocando um standard de MPB, são músicos de Goiânia. Acho chato, sem sal, fico do lado de fora conversando com umas pessoas que conheço ali na hora.

Volto pro camarim, desta vez em busca de uma coca ligth, que é o que encontro. João Donato tem uma coleção imensa de bonés rosas. Estava com um novo, desta vez de festival de um festival de Jazz em Sidney, noticiado pelas agências internacionais, com destaque para o dia apenas de Bossa Nova. Vestia também uma camisa branca com discretos desenhos de coqueiro em verde, parecia relaxado e estava feliz, seu casamento estava fazendo seis anos naquela noite e a mulher, uma gaúcha de Brasília, havia encontrou as amigas, como a groupie. “Não vai tocar “Nasci para Bailar?”

Volto para o teatro e sento em qualquer lugar, haviam me dito que era pra sentar na fila L, mas eu não tinha conseguido entender se era E ou L e sentei em qualquer lugar.

Donato entra e toca todos os hits. Canta horrivelmente mal, toca magnificamente bem, sua banda soa como algo antigo, mas plenamente original. Ele não quer ser moderno, ele fez todas aquelas músicas como “Lugar Comum”, “Emoriô”, “A Paz”, “A Rã”, esta última que o maldito Black Eyed Peas cagou e sentou em cima e se não me engano o mala do D2 também.

Quando acaba já é mais de uma hora, e volto para o hotel para dormir, no dia seguinte eu queria ver a Lisa bem cedo.

Dia 2

Lisa me pega no hotel e me leva para sua casa. Edu nos recepciona com China, uma simpática boxer albina de quatro meses. Edu está com a mesma calça cáqui do Caminho, ele diz ser coincidência. A chácara onde eles moram é deslumbrante, cheia de árvores. Ele é agrônomo, curte a terra, um cara bacana, simples e calado. Não gosta de sair de casa, não tem muitos amigos, sem muito saco para gente, prefere as plantas, os bichos e a terra. Um cara coerente.

Fomos almoçar um peixe na casa de um casal de amigos da Lisa. Os dois jornalistas têm um filho de um ano e meio, Francisco. Assumi o posto de tio e ele me confundia com um tal de Pablo e só me chama de Pato.

A noite começa com o Sambajazz Trio, do pianista Kiko Continentino, do baixista Luizão Alves, o mesmo que havia tocado com o João Donato, e Clauton “Neguinho”. Eles retomam o clima sessentista sem soarem saudosistas. Kiko incorporou plenamente o vocabulário dos grandes pianistas brasileiros (Luís Eça à frente), sua mão direita impressiona numa espécie de stride brasileiro, em que as teclas tornam-se percussão e as harmonias vão se encaixando em blocos.

Em seguida, surgem os locais do grupo local Etnias. Com esse nome, esperava alguma coisa meio world music. Mas não, o pianista sérvio Dean Krassic é um insano que gosta de Frank Kafka e põe nomes non-sense nas músicas, o baixista Marcelo Maia é um dos melhores de Goiânia e os grooves de Fred Valle deram uma quebrada em toda aquela caretice que prevalecia no festival. Foi o momento mais experimental e que mais funcionou no teatro, o templo de dionísio é um lugar para coisas absurdas. Pena que eu ainda não havia descoberto a pista de dança na coxia. Debussy com baião caiu bem.

Fechando a noite, o Kenny G brasileiro. Vejo uns flashs e só de ouvir aquele sax cheio de açúcar demais para minha maneira amarga de existência já dá no saco e eu me mando atrás de um charuto no posto de gasolina.

A rádio local retransmite o show e ainda ouço o final do show do saxofonista. E o pior é que está soando bem. Ambigüidades sutis da vida.

Dia 3

Penso em entrevistar Luiz Alves, que está no mesmo hotel que eu. Vou até o supermercado comprar pilha para o gravador. Na volta, espero dar 11 horas e peço uma ligação para o quarto dele. Mas ele pede para não ser perturbado e a ligação volta.

Durmo mais um pouco, dou uma passada na piscina e Lisa me pega para mais um passeio. Dessa vez ao Memorial do Cerrado.

à noite, vamos à casa de um casal de amigos de Brasília. Ficamos todos loucos de vinho e perco a apresentação de Hamilton Pinheiro.

O segundo show é de uma dupla de Brasília. O gaitista é bom e o violonista também, mas o formato parece um pouco limitado. Melhor momento, sem dúvida, uma citação do hino “Blue in Green”, do Miles Davis.

“O pife é a coisa mais moderna que existe, imagina o cara pegar um bambu no meio do mato e fazer um som com aquilo”, diz Malta. Alguns minutos atrás, ela já havia tocado muito, não precisava dizer mais nada, mas o soprista parecia particularmente inspirado nesta terça-feira de Carnaval em Goiânia. Como disse Lisa, ele estava “iluminado”. Assim que o show acabou, com todos os músicos do Pife Moderno levantando uma imensa flauta do Xingu, reparei que Lisa ao meu lado estava emocionada. Na fileira da frente, atrás e de todos os lados, havia gente exultante. O “mood” do jazz havia baixado entre nós. E eu estava um pouco triste por ter que ir embora.

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