Na porta do restaurante e casa de shows Grazie a Dio, no descolado bairro paulistano Vila Madalena, existe um quadro negro em que todos os dias algum funcionário escreve o nome da atração musical e seu estilo. “Marku Ribas: MPB”, eram os dizeres naquela noite. Mas o cantor, que certamente é um dos inventores do samba-rock, protestou, brincando, que as palavras escritas a giz deveriam ser: “Marku, a lenda”.
Cerca de duas horas antes, acompanhei o final da passagem de som do músico com um quarteto. No camarim, antes da segunda pergunta, iniciei a conversa em tom vacilante, perguntando o porquê de sua mudança de Belo Horizonte para São Paulo, ele já me ameaçava. “Você vai ter que fazer mais entrevistas porque só dessa você não vai conseguir. E eu vou ser muito polêmico contigo. Eu acho que vocês para fazer uma entrevista tem que ter no mínimo três tópicos do cara, que ninguém perguntou.”
Nascido Marco Antônio Ribas, há 60 anos, em Pirapora (MG), desde que Marku passou uma temporada na Martinica e Jamaica, a música latina passou a ser uma grande influência em seu som, junto com funk, soul, jazz, samba, bossa e a música das águas do rio São Francisco que conheceu ainda criança. Filho de uma índia caiapó, a música indígena também faz parte do alicerce de Marku.
Inquieto, seu currículo é extenso, trabalhou com Erlon Chaves, Wilson das Neves, João Donato e Erasmo Carlos, entre outros. No caribe, abriu show para James Bronw e conheceu Bob Marley. Gravou com os Rolling Stones no álbum “Dirty Work” (1985), viajou pela África. Também é ator, foi dirigido por Robert Bresson na França e está em filmes nacionais como “Uma Onda no Ar” e “Chega de Saudade”.
Apesar de ter lançado discos como “Underground (1976), “Barrankero” (1978), “Cavalo das Alegrias” (1979) e “Mente e Coração” (1980) cultuados entre colecionadores de vinis, pouco se fala de Marku. No final do ano passado, a Dubas lançou a excelente coletânea “Zamba Ben”, compilado por Ed Motta, que nunca escondeu ser fã de Marku.
Em que medida a cultura popular está na sua música?
Marku Ribas – Para começar não existe o folclore de um lugar, existe o folclore em... folclore em Londres, em Martinica, em Pirapora, com as suas manifestações locais e tudo aquilo que é do DNA, da história cultural.
Outra coisa que você observa quando ouve os grupos que trabalham a música popular é que o segmento social que segura esta manifestação são os pobres, na sua generalidade, e na particularidade, os negros e indígenas.
A primeira festa realmente democrática e popular que existe é o Carnaval. Fora isso pouca gente vai atrás das festas de São Gonçalo, não sabem quando é o reisado....
Mas como foi que você tomou contato com essa cultura?
Marku – Eu nasci em Pirapora, a 360 quilômetros de Belo Horizonte, onde existe um sítio arqueológico indígena de 2.500 anos. E, entre o barranco de Pirapora e o barranco Buritizeiro está o rio São Francisco no meio. São duas cidades fronteiriças uma da outra, igual a Juazeiro e Petrolina, em Pernamubuco e Bahia, igualzinho, com uma ponte no meio.
Então de de onde eu vim, não existe esta cultura por nenhum imposição de governo ou universidade, aquilo está lá porque está lá. As pessoas fizeram a história, viveram, motivaram aquilo e é uma realidade. E isso não é impulsionado por nada, na verdade é até negligenciado.
Como eu vim desta região, não é novidade para mim estas manifestações autênticas, seja de quando a quimbanda, o candomblé era proibido. Como já foi a umbigada, do pessoal estar dançando, a polícia chegar furar os tambores, prender o pessoal, quebrar as portas. Faziam isso.
Esta cultura, na verdade popular, é a base da cultura de qualquer país e principalmente de qualquer cidadão.
E como foi que você teve a sacada de usar baixo elétrico, bateria na sua música?
Marku – Eu sou moderno há muitos anos. Eu sou o modernos dos modernos. Antes de aparecer um piano na minha vida, um violão, eu já estava buscando por mim mesmo.
Minha música é o som dos pássaros, é a água, é a atmosfera do clima. Música é isso, cara.
Quando eu me profissionalizei em 1972, não havia ainda no Brasil essa coisa moderna, que para mim começou com o Airto Moreira, paranaense que começou a tocar bateria e percussão com o Sambalanço.
Na minha opinião, tudo que veio nos anos 1970 começou uma década antes. O momento mais técnico da música brasileiro, mais inspirado, foi nos anos 1960, a época dos trios de piano-baixo e bateria.
Você tinha o Milton Banana Trio, Bossa 3, Som 3, Tamba Trio, Manfred Fest Trio, Jongo Trio, Zimbo Trio.
Foi uma época em que você notava a música criativa, com a influência jazzística, a influência do nosso samba quebrado, a coisa afro...
Como filho de uma caiapó, que importância você atribui para a música indígena?
Marku – Falta reconhecimento para a música indígena. Do que ela nos permitiu para conhecer o resto. Ela é a música que mais permite a intromissão de tudo que eu quiser porque ela é mântrica o tempo todo. Você pode enfiar coisa ali dentro do que você quiser, de timbres....Você quer dois exemplos de discos indígenas que vale a pena você conhecer? Um se chama “Mehinaku” e outro “Caiapó”.
Estes dois trabalhos te mostram as possibilidades da música indígena. A ponto de no “Caiapó”, eles terem feito dois discos o “Ethnic” e o “Fusion”. O primeiro é só original é a mulherada, os meninos, os velhos, os cantos, as flautas deles. E o segundo é com piano, baixo, violão. E aí o pau quebra. São impressionantes os discos. Infelizmente, a música indígena é ignorada no Brasil. Eu tenho pena dos ignorantes, mas eu sei que não é fácil ter acessso, se tiver preguiça não acha.
Por ter nascido em Pirapora, você vê alguma relação do São Francisco com a sua música?
Marku – O rio São Francisco é tão imporante quanto o rio Nilo africano e o Mississipi. Eu tinha um programa na TV Bandeirantes lá em Minas, que se chamava “Contando e Cantando”, em que eu entrevistava esse povo da roça, pedia para contarem “causos”, cantava com eles. Eu queria salvar as águas, isso tudo era um pretexto para dizer vocês estão vendo estes caras na televisão? Eles vivem aqui, se vocês gostam do que eles fazem, vocês tem que conservar onde eles moram. Se você não preservar o artista, você acaba com a arte.
Chega de ser estúpidos, brasileiros, não vendam o artista, vendam a arte do cara.
O que você acha do samba-rock?
Marku – É só um rótulo, como lambada, um rótulo. Não é um ritmo.
Mas você voltou a ficar conhecido por causa do samba-rock...
Marku - Voltei por quê? Eu fui conhecido e depois fui esquecido?
Então, vamos dizer assim, você ficou conhecido pela minha geração...
Marku – É bom explicar.... Se você nasceu hoje e ainda não tem dente. Se vire, porque existe mandioca, um monte de comida dura que você vai ter que mastigar. É você que nasceu agora e não tem dente. Não queira que eu tire os meus dentes para começar a fazer dente hoje. Eu já mastigo há muitos anos.